Autor: Xinran [薛欣然]
Gênero: Biografia, reportagem
Ano: 2002
Páginas: 315
Sinopse: Entre 1989 e 1997, a jornalista Xinran entrevistou mulheres de diferentes idades e condições sociais, a fim de compreender a condição feminina na China moderna. Seu programa de rádio, Palavras na brisa noturna, discutia questões sobre as quais poucos ousavam falar, como vida íntima, violência familiar, opressão e homossexualismo.De forma cautelosa e paciente, Xinran colheu inúmeros relatos de mulheres em que predomina a memória da humilhação e do abandono: estupros, casamentos forçados, desilusões amorosas, miséria e preconceito.São histórias como as de Hongxue, que descobriu o afeto ao ser acariciada não por mãos humanas, mas pelas patas de uma mosca; de Hua'er, violentada em nome da "reeducação" promovida pela Revolução Cultural; da catadora de lixo que impôs a si mesma um ostracismo voluntário para não envergonhar o filho, um político bem-sucedido; ou ainda a de uma menina que perdeu a razão em conseqüência de uma humilhação intensa.Quando Xinran começou suas entrevistas, o peso de tradições antigas e as décadas de totalitarismo político e repressão sexual tornavam muito difícil o acesso à intimidade da mulher chinesa. Desde 1949, a mídia chinesa funcionava como porta-voz do regime comunista. Rádio, televisão e jornais estatais eram a única fonte de informação, e a comunicação com pessoas no exterior era rara.Em 1983, o presidente Deng Xiao Ping iniciou um lento processo de abertura da China. Alguns jornalistas começaram a promover mudanças sutis na maneira como apresentavam as notícias. O programa apresentado por Xinran era um dos poucos espaços em que as pessoas podiam desabafar e falar de seus problemas pessoais. Nos relatos do livro, a autora possibilita a vozes antes silenciadas revelar provações, medos e uma capacidade de resistência que as permitiu se reerguer e sonhar em meio ao sofrimento extremo. Em condições extremas de vida, como a dos campos de reeducação da Revolução Cultural, afloram sentimentos de maternidade, compaixão e amor. O olhar objetivo de Xinran dá ao tema um tratamento firme e delicado, trazendo à tona as esperanças e os desejos escondidos nessas difíceis vidas secretas.
"Todo mundo diz que as mulheres são como a água. Penso que é porque a água é a fonte da vida e se adapta ao ambiente. Assim como as mulheres, a água dá de si mesma em todo lugar aonde vai para nutrir a vida"
Essa vai ser uma das resenhas mais difíceis que já escrevi.
Quando cheguei ali pelos vinte anos, perdi a visão idealista que tinha de países do exterior. A gente começa a olhar mais criticamente o mundo à nossa volta, assim, no momento que passei a me interessar por produções japonesas e pela Ásia em si, já tinha essa concepção de que nada é lindo e glamoroso, tudo tem um lado negro e sangrento e nenhum daqueles países era diferente. Mas uma coisa é você ser consciente disso, outra bem diferente é você ver essa realidade a partir da ótica de uma "vítima" daquele sistema, nós temos uma visão muito superficial da história deles, no que me toca, até ler esse livro, apesar de não ter uma visão muito positiva sobre o regime político da China, meu conhecimento sobre o assunto era muito insípido, mas após ler o relato dessas mulheres tudo que consigo sentir é repulsa.
A jornalista Xue Xinran, nascida em Pequim, viveu os difíceis dias da revolução cultural que precedeu a consolidação do partido comunista chinês, ela própria é uma vítima dos cruéis conflitos que se espalharam pelo país nos dias negros e tormentosos que vinham sob as falsas promessas de igualdade social e liberdade. Tal como acontece em praticamente todas as ditaduras, muitos jovens se deixaram ludibriar pelas ideias revolucionárias que prometiam mudar suas vidas para sempre, deixá-los em um mundo utópico bom para todos quando, na verdade, era somente uma máscara para justificar a crueldade arraigada nos homens, os ideais retrógrados da sociedade patriarcal e submeter o povo ao duro controle de um governo totalitário e manipulador.
Foi com seu programa de rádio que Xinran teve contato com as histórias de diversas mulheres, acobertadas pelo anonimato, elas se sentiam seguras para abrir a caixa de Pandora de seus passados trágicos de perda, repressão e violência, cada vez que ouvia suas histórias, mais a jornalista desejava conhecer a realidade das mulheres de seu país. Os relatos do livro cobrem os primórdios da instauração do partido comunista até sua consolidação, os negros dias de guerra civil que separaram famílias, devastaram vidas e mantém ainda hoje a sociedade sob a ilusão da liberdade.
"De modo geral foram as crianças, sobretudo as meninas, que arcaram com as consequências do desejo sexual frustrado. A menina que cresceu durante a Revolução Cultural viu-se cercada de ignorância, loucura e perversão. (...) Quando o corpo amadurecia, a menina se tornava vítima de ataques indecentes ou estupro — meninas como Hongxue, cuja única experiência de prazer sensual veio de uma mosca; Hua’er, violentada pela Revolução; a mulher na secretária eletrônica, dada em casamento pelo Partido; ou Shilin, que jamais saberá que cresceu. Os perpetradores foram seus professores, amigos, até seus pais e irmãos, que perderam o controle dos instintos animais e agiram da maneira mais feia e egoísta de que um homem pode agir."
Enquanto avançava pelos capítulos do livro e ia mergulhando no passado sombrio dessas mulheres, a sensação que eu tinha era que havia levado uma surra. Era uma espécie diferente de dor física. Empatia por sentir na pele suas violações e desespero, o medo dos dias incertos em uma sociedade que não as protegia, não lhes dava acesso a conhecimento, as mantinha refém de uma ideia falsa de liberdade, de um senso arcaico de dever e de uma ideia suja de "amor". O mais chocante é ver a resiliência delas, a luta até o final para sobreviver ou, como Hongxue, que escolheu deteriorar a si mesma a voltar para as garras do pai abusivo. Quão baixo o homem pode chegar? Até agora não encontrei a resposta e acho que nunca vou descobri-la.
Várias vezes precisei pausar a leitura para desanuviar os pensamentos e aliviar um pouco a carga pesada no meu coração, pensar que essa não é uma realidade apenas da China, mas que acontece ainda hoje em diversos lugares do mundo. Nós, mulheres, ainda somos reféns do medo, da desconfiança, não vivemos com total liberdade apesar da sociedade dar a ilusão que sim. E o mais revoltante é que, no fim, a culpa é sempre nossa. Lembro de quando estava lendo o relato das mães do terremoto, o mundo delas desabando, as pessoas que deveriam ajudá-las cometeram a barbárie de destruir a vida de uma garota inocente já vitimada pela catástrofe, aquilo mexeu comigo de uma maneira avassaladora. A história terrível de Hua'er, enquadrada por ser estrangeira, tinha apenas onze anos quando os homens do "partido" tiraram todos os seus sonhos e a esperança de uma vida normal.
Lendo esses relatos, sobretudo aqueles diretamente ligados à revolução cultural, notava coisas que já tinha visto em livros como A Revolução dos Bichos e Fahrenheit 541, a maneira como eles manipulam a mente com ideologias falsas, com a promessa de um mundo utópico que nunca se concretiza e, primordialmente, tiram o acesso à informação, à criticidade. Banem livros. Um povo ignorante é um povo fácil de manipular. Ainda hoje, o governo Chinês controla o que seus cidadãos leem, mangás como Death Note são proibidos, não preciso dizer mais. Vivem em uma redoma de "moral e bons costumes" como um mote para enclausurar o direito de escolher, de pensar e a liberdade de agir das pessoas.
"minha impressão era de que a China continuava dominada pela Revolução Cultural: a política regendo cada aspecto da vida cotidiana, e certos grupos sendo submetidos a censura e julgamento para que outros sentissem que estavam realizando alguma coisa."
“Nós dizemos: ‘em casa, acredite nos seus deuses e faça o que quiser; fora de casa, acredite no Partido e tome cuidado com o que fizer’."
Quantos dos ideais absurdos pregados ou distorcidos nesse livro ainda são uma realidade na sociedade chinesa "moderna"? Um país onde uma garota saía da aula na universidade e é violentada no estacionamento, mas a polícia simplesmente não faz nada. Quantas vozes não são caladas em nome da imagem dessa "política igualitária"? Fico me perguntando que tipo de mentalidade as chinesas de hoje em dia têm, o que acham do país em que vivem e da sociedade que as cerca. Não sou habilitada para dizer o que mudou e o que permanece igual para elas. E ler esse livro me fez pensar em tantas outras mulheres vivendo sob a sombra do medo e da repressão cujos relatos nunca vieram à tona, na China, no Brasil, na Índia, no Afeganistão, no mundo...
Terminei me sentindo vazia, triste. Mas com um olhar novo sob a luta diária das mulheres nessa sociedade que ainda precisa tanto aprender a empatia. Sem contar que foi realmente bom conhecer essa China crua, sem maquiagem. Foi uma leitura pesada, difícil, indigesta, mas necessária. Ás vezes nós precisamos de livros que nos estapeiem, nos façam olhar o mundo que nos cerca e nos alerte para as ideologias falsas que culminam em tragédia e manipulação. A meu ver, é uma leitura obrigatória, todos deveriam pensar pelo menos uma vez no que é ser mulher, nas dificuldades que enfrentam todos os dias, na essência dessas mulheres. Empatia é a palavra chave desse livro. É impossível ler e não sentir a dor rasgando sua alma, o desespero delas, o medo em cada palavra.
Foi lendo esse livro que percebi meu parco amadurecimento, dez anos atrás eu não teria conseguido levar essa leitura até o final. Desejo ter oportunidade de, futuramente, ler outros livros da autora.
"Sem livros não compreenderíamos o mundo; sem livros não poderíamos nos desenvolver; sem livros, a natureza não pode servir a humanidade."
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