quinta-feira, 17 de abril de 2025

[Livro] Fédon

Original:  Φαίδων

Autor: Platão

Ano: Mais ou menos 347 a.C.

Sinopse: Fédon de Élis, discípulo de Sócrates, encontra-se com o pitagórico Equécrates, provavelmente na pátria de este último. Ali, Fédon narra o sucedido nas últimas horas de vida de Sócrates e do que se falou nessa ocasião. Isto permite a Platão dispor de um narrador que possa apresentar ao leitor não só o diálogo em si, mas também toda a cena e ações dos protagonistas.

O diálogo discorrido por Fedón situa-se na prisão em que Sócrates esperava o momento de sua execução. Os interlocutores principais de Sócrates são Símias e Cebes, velhos discípulos de outro filósofo.

Embora gostasse muito das aulas de filosofia na escola, não sou versada no assunto. Sempre o achei fascinante, mas denso demais para meu conhecimento limitado sobre tudo. Esse foi meu primeiro contato com Platão e aconteceu na faculdade, li para fazer um trabalho de ética na época. Fazendo meu caderno de leitura e rememorando os livros que fizeram parte da minha trajetória a partir de certa idade (porque contabilizar os lidos quando criança seria impossível) deparei-me com este ainda não resenhado e decidi reler para recordar do que se tratava.

O livro, escrito em forma de diálogo, retrata os últimos momentos de Sócrates na prisão antes de tomar o veneno, pena firmada pelos juízes para sua execução. Rodeado por alguns de seus discípulos, o filósofo mostra uma postura otimista sobre a morte e começa a discutir com eles a respeito da imortalidade da alma, até o diálogo se tornar uma verdadeira batalha de argumentos e contra-argumentos sobre o assunto. Usando analogias bem cotidianas, Sócrates consegue se fazer entender e provar seu raciocínio convencendo os discípulos que aquele é apenas o fim do seu corpo material, mas, por ter dedicado sua vida ao aperfeiçoamento de sua alma, ela será eternizada junto aos deuses onde viverá. Seus discípulos, embora terminem concordando com suas afirmações, são incapazes de aceitar sua morte de forma tão otimista, desabando em lágrimas quando chega o momento final, narrado em detalhes.

Interessante observar que, pouco mais de 400 anos antes de Cristo, já se falava sobre a imortalidade da alma, algo que só vem a ser tratado de forma um pouco tardia no antigo testamento. Inclusive, embora fosse grego, Sócrates se mostra crente em uma divindade única, recusando a crença nos deuses atenienses. Isso também me chamou a atenção, embora não possa afirmar ser o Deus que cultuamos no cristianismo, entendi se tratar da mesma linha de pensamento. Claro, dentro de toda a sua vertente mitológica a respeito do pós-vida, sua dialética sobre a imortalidade da alma e a importância de viver em função de fortalecer o espírito me soou até muito cristã.

2.500 anos atrás, ele levanta pontos que ainda são relevantes na atualidade como se tivessem sido escritos no dia anterior.

"Outra causa não têm as guerras senão o amor do dinheiro e dos bens que nos vemos forçados a adquirir por causa do corpo, visto sermos obrigados a servi-lo."

Lendo a bíblia até agora, pude fazer alguns intertextos sobre os ensinamentos adotados em livros como Eclesiastes e Provérbios e o diálogo do filósofo sobre o cultivo de uma vida virtuosa que se distancia dos prazeres mundanos, valorizando a sabedoria, a coragem, a temperança e a justiça, para, irrepreensível, ser merecedor de alcançar as bem-aventuranças do fim da jornada. Essa ideia é muito similar àquela apresentada por Cristo e pela igreja como modelo de uma vida cristã. Enquanto ia lendo, observava como ele descrevia, já na sua época, a sociedade que vivemos hoje, pautada em vaidades e valores supérfluos que se esvaem tão logo finda a jornada vazia com a qual boa parte da humanidade leva suas vidas.

Fica claro, desde o começo, que o principal fato dos homens temerem a morte está no fato de não conseguirem desapegar daquilo que é passageiro. Nós temos de forma inerente em nós uma rejeição natural ao fim da vida, evitamos pensar nisso, chegamos mesmo a tratar como uma forma literária ficcional e tendemos a viver com a certeza do amanhã. Assim, ao perder um parente ou receber um diagnóstico que coloque em risco essa certeza, desabamos. E, pra mim, isso fez muito sentido. Repassando o número de vezes que fui derrubada pelo luto e o inúmero de crises ansiosas que já sofri diante de um fim emimente, a tranquilidade de Sócrates e sua postura diante da morte evocou reflexões acerca de como estava vivendo até aqui minha própria vida.

"Há de haver para nós outros algum atalho direto, quando o raciocínio nos acompanha na pesquisa; porque enquanto tivermos corpo e nossa alma se encontrar atolada em sua corrupção, jamais poderemos alcançar o que almejamos."

Isso me levou a pensar, também, sobre o papel da religião na minha vida. Nasci e cresci em uma família católica, mesmo tendo poucas lembranças da minha infância, trago comigo alguns testemunhos pueris da fé na qual fui mergulhada desde o nascimento. E entendo, igualmente, a razão dos padres estudarem filosofia na sua formação teológica, ao contrário do que muita gente ainda acredita. Mesmo se tratando de vertentes distintas, elas, em alguns pontos, convergem. Pensar, afinal, é o que nos distingue das demais criaturas e, embora essa tenha sido uma prática cada vez menos usada pela humanidade, vale como um cutucão à nossa raiz existencial. A dimensão da fé não é um conforto mero diante da dificuldade ou mesmo da finitude, mas o guia que nos impulsiona a tratar como primordial aquilo que é realmente importante: nosso interior.

Em um mundo cada vez mais individualista, robótico e frio, viver em prol do nosso crescimento espiritual pode se tornar perigoso, pois viola as vertentes das grandes massas e dos organismos manipuladores por trás delas. O diferente, não importa em que época se encontre, tende a atrair a destruição de si mesmo pelos "iguais". Basta olhar o curso da história para encontrar diversos exemplos desse fato. E se estamos caminhando rumo a uma autodestruição cada dia mais inevitável, aquilo a que a igreja chama "conversão" não se trata apenas da escolha de um lado, mas da adoção de uma postura que priorize a elevação daquilo mais caro em nós: nossa humanidade

"Pois conhecer, de fato, consiste apenas no seguinte: conservar o conhecimento adquirido, sem vir nunca a perdê-lo."

Fédon é um livro pequeno, pouco mais de cem páginas, mas não é de longe o tipo de leitura que você faz numa sentada só no início da tarde. É um livro denso, que puxa reflexões  não somente a respeito da vida e da morte, da conduta de nossa trajetória como seres humanos em uma jornada finita cujo significado facilmente se corrompe. E, embora seja um diálogo essencialmente sobre morte, usando de várias analogias e comparações para provar suas argumentações, é igualmente um manual sobre a vida. Sobre aquilo essencial na nossa maneira de lidar com nossa trajetória breve sobre essa terra e o legado que deixaremos para aqueles que conviveram conosco. O otimismo demonstrado em suas linhas leva a uma profunda reflexão sobre o motivo da nossa existência e me recordava uma frase repetida diversas vezes por um padre da minha região: "Se não vivemos para servir, não servimos para viver". 

Acho que, embora complexo em alguns momentos, é uma leitura que todo mundo devia fazer uma vez na vida. 

"Então, o que importa é não desanimares, disse; é possível que ainda venhas a ouvi-las. Talvez te pareça estranho que entre todos os casos seja este o único simples e que não comporte como os demais, decisões arbitrárias, segundo as circunstâncias, a saber: que é melhor estar morto do que vivo. E havendo pessoas para quem a morte, de fato, é preferível, não saberás dar a razão de ser vedado aos homens procurarem para si mesmos semelhante benefício, mas precisarem esperar por benfeitor estranho."

 

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