domingo, 16 de agosto de 2020

[Livro] Fahrenheit 451 (+ Adaptações)

 

Original: Fahrenheit 451

Ano: 1953

Autor: Ray Bradbury

Páginas: 215

Gênero: Distopia, soft science fiction

Sinopse: Escrito após o término da Segunda Guerra Mundial, em 1953, Fahrenheit 451, de Ray Bradubury, revolucionou a literatura com um texto que condena não só a opressão anti-intelectual nazista, mas principalmente o cenário dos anos 1950, revelando sua apreensão numa sociedade opressiva e comandada pelo autoritarismo do mundo pós-guerra. Agora, o título de Bradbury, que morreu, em 6 de junho de 2012, ganhou nova edição pela Biblioteca Azul, selo de alta literatura e clássicos da Globo Livros, e atualização para a nova ortografia.

A singularidade da obra de Bradbury, se comparada a outras distopias, como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou 1984, de George Orwell, é perceber uma forma muito mais sutil de totalitarismo, uma que não se liga somente aos regimes que tomaram conta da Europa em meados do século passado. Trata-se da “indústria cultural, a sociedade de consumo e seu corolário ético – a moral do senso comum”, segundo as palavras do jornalista Manuel da Costa Pinto, que assina o prefácio da obra. Graças a esta percepção, Fahrenheit 451 continua uma narrativa atual, alvo de estudos e reflexões constantes.

O livro descreve um governo totalitário, num futuro incerto, mas próximo, que proíbe qualquer livro ou tipo de leitura, prevendo que o povo possa ficar instruído e se rebelar contra o status quo. Tudo é controlado e as pessoas só têm conhecimento dos fatos por aparelhos de TVs instalados em suas casas ou em praças ao ar livre. A leitura deixou de ser meio para aquisição de conhecimento crítico e tornou-se tão instrumental quanto a vida dos cidadãos, suficiente apenas para que saibam ler manuais e operar aparelhos.

O Livro

"A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?"

Se essa citação acima não te causou incômodo, te assustou pelas recentes ameaças políticas do cenário brasileiro e não te fez torcer o nariz, então tem algo bastante errado com você. Cogite pegar um livro de história. Ler Fahrenheit 451 é como levar um tapa na cara e um soco no estômago, especialmente diante da real ameaça ao livro e ao conhecimento que enfrentamos nesse momento. 

Seguimos um mundo ali pelos anos 90, em algum lugar não especificado nos EUA, onde os bombeiros são as "armas da felicidade", eles queimam livros e mantem a sociedade nas garras daquilo que o governo deseja delas: alienação. Um mundo onde ninguém se preocupa com nada, vivem para assistir televisão sem absorver nada útil, sem pensar, entorpecidos por remédios e existindo sem qualquer razão, de forma robótica. Porque pensar, questionar, opinar, causa desconforto, gera infelicidade.

O protagonista e narrador é Montag, um bombeiro que como a maioria dos colegas de ofício vive nessa mesma bolha, mas esconde um segredo no duto de ventilação da sua casa: livros. Claro que ele não começou a furtá-los de uma hora para outra, isso se deu de um encontro que ele teve com um velho professor de inglês que perdeu seu espaço para a doutrinação televisiva. Mesmo sem tê-los lido, Montag sente certa atração por eles.

Um dia, porém, ao voltar do trabalho, um encontro muda toda a sua vida: uma adolescente chamada Clarisse entra em seu caminho e puxa assunto com ele. Como bombeiro, muitas pessoas sentem-se intimidadas perto dele, mas aquela garota estranha não parece incomodar-se na sua presença. Logo de cara, Montag percebe que Clarisse é diferente, ela não vê o mundo pela limitação dos ecrãs nas paredes como sua esposa Mildred, ela observa o céu, prova a chuva, passeia ao ar livre, questiona o porquê das coisas, algo por si só já perigoso demais em um mundo que aceita tudo que lhe é dado sem fazer perguntas.

Essa adolescente faz a Montag três perguntas cruciais: 1. Por que ele faz o que faz. 2. Um dia, bombeiros apagaram incêndios ao invés de provocá-los? 3. Você é feliz? Ao longo da narrativa, nós vamos sendo, junto com Montag, apresentados à importância dessas indagações. A primeira pergunta levou o bombeiro a questionar a bolha que lhe cercava. A segunda, fez-lhe questionar a sua verdade enfiada goela a baixo e a terceira fez-lhe questionar sua própria existência naquele mundo. Pura filosofia. E é essa uma das coisas que esse livro nos mostra: a importância do pensar, logo, da filosofia.

451 ºF equivale a 232,778 °C e diz-se ser a temperatura em que o papel do livro pega fogo e queima, mas a ideia por trás dessa afirmação vai muito além, a ideia aqui é justamente queimar aquilo que desperta a criticidade, queimar o que faz as pessoas questionarem o mundo no qual habitam, queimar as ideologias que as fazem lembrar que tem direitos. Queimar livros é queimar o direito à expressão, ao conhecimento, ao pensamento e isso implica tirar das pessoas o direito de escolha ou subverter esse direito em uma manipulação que as faça crer que elas têm controle sobre o que fazem.

É o que nós vemos conforme Montag chega em casa com a cabeça cheia de pensamentos conturbados se fazendo acreditar que é feliz, mas sem conseguir se convencer disso. Olhando sua esposa apática, viciada em remédios e controlada por uma "família" virtual inexistente e sem afeto, ele se pergunta se aquilo que faz é mesmo para garantir felicidade às pessoas, sequer consegue lembrar o dia que conheceu a esposa, ainda mais: começa a se questionar se aquela é mesmo sua esposa e não uma estranha que fizeram-no acreditar que era sua esposa. E o choque só aumenta quando Montag vê a mulher caída no chão, inconsciente, após tomar mais comprimidos do que deveria.

Desesperado, ele telefona para a emergência enquanto as perguntas de Clarice pairam em sua mente tão quentes quanto o fogo que consumiu os livros que ele queimara antes. Então temos outro choque: os homens que chegam para socorrer a esposa de Montag não demonstram qualquer sensibilidade, tratam-na apenas como mais uma a apagar por causa dos remédios e mais: dizem com a maior naturalidade que ela não será a primeira e nem a última. Isso só reforça o cenário assustador do livro: uma sociedade que não se importa, que não tem nada a perder e por isso a vida é tratada de forma vã, sem valor.

Assim, o bombeiro começa a saga para descobrir o que há por trás das palavras dos livros que queima, por que pessoas perdem a vida para mantê-los e para continuar seu legado, por que ainda existem aqueles como Clarisse, que se rebelam contra os ecrãs e escolhem pensar, sentir o desespero das ideias e dos questionamentos, ser parte da magia que é ler um livro. E quanto mais Montag descobre as verdades que lhe foram tiradas e imerge no mundo das palavras, mais seu mundo vai sendo desconstruído e ele passa a enxergar as verdades que sua bolha lhe impedia de ver, mas sua corporação não está disposta a deixá-lo sair numa boa e sua esposa  — um fantoche bem treinado desse mundo — é a primeira a se virar contra ele.

Gente, é perturbador a forma como esse livro é atual. Enquanto ainda estava lendo fiquei sabendo da proposta de tarifar os livros e meu coração pulou batidas diante do horror dessa distopia podendo se tornar real. Analisem bem: primeiro tiram filosofia e sociologia das escolas, minimizam o estudo de história — que em vários aspectos já é subvertido com algumas desinformações dos livros — depois privatizam o livro, isso não soa assustador pra você? Se não, sugiro que pegue urgentemente um livro de história. É exatamente assim que começa um sistema de manipulação opressiva das massas: tirando completamente o acesso ao conhecimento e à capacidade crítica da população. Não é necessário queimar os livros, torne-os inacessíveis e o resultado será o mesmo.

O Brasil já é um país que culturalmente lê muito pouco, infelizmente, mas houve sim um crescimento no meio literário e temos que festejar isso, contudo, a ameaça ainda é real, o número de não pensantes ainda supera o de pensantes e isso é desesperador. Livros como Fahrenheit 451 devia ser levado para debates em aulas de literatura e história dentro das escolas, dentro das faculdades, o pesamento urge, o despertar da criticidade e da fome de conhecimento precisa ser inflamada nessa população manipulada e alienada que regurgita atrocidades como a volta da ditadura ou o apoio completo a discursos facistas.  E quando a gente lê um livro desse só percebe como essa realidade imaginada em 1953 continua sendo uma ameaça real que se concretiza nas sombras de uma nação que não tem educação como prioridade, na qual as pessoas escolhem a ilusão do ecrã e se submetem a aceitar o que lhes é oferecido sem questionar.

Conversar, discutir, trocar ideias — ter ideias! — se posicionar sobre as coisas, contemplar a natureza — enquanto ela ainda existe! — pensar e repensar o mundo, isso é literatura. Há vida nos livros. Mesmo aqueles que contam histórias impossíveis e cheias de fantasia escondem sua verdade nas entrelinhas. É urgente que nos desvinculemos mais do nosso lado máquina e comecemos a olhar para o nosso lado humano, aquele que ajuda uma pessoa acidentada ligando para a emergência ao invés de gravar para pôr nas redes sociais, aquele que empatiza com o sofrimento dos outros, aquele que tem sede de descobrir a razão do azul ser azul ou da política ser o que é hoje. Aquele que olha o céu de verdade e não na proteção de tela do computador. Livros como Fahrenheit 451 seriam proibidos em países ditadores porque levantam ideias, questionamentos, fazem a gente enxergar a sociedade como ela se torna. Coloca aquela pulguinha atrás da nossa orelha e nos faz olhar em volta se perguntando "será que isso é manipulação?" "Será que já está acontecendo aqui?"

Imagine um país como a Coreia do Norte, por exemplo, onde tudo é proibido. O povo só tem acesso ao que o ditador quer, vive na miséria enquanto ele festeja banquetes e a pior parte é que a lavagem cerebral é feita de tal forma que eles acreditam que só existe aquele modo de vida, que eles são abençoados, felizes. Não conseguiu imaginar? Então vamos trazer a ilustração para cá, pro sul da América: imagine que você acorda um dia e o mundo é quase como o universo de Wall-e. As pessoas estão uma ao lado da outra, mas se comunicam por mensagem de vídeo (!!!!), pior, dizem que D. Pedro I foi o pioneiro no combate aos livros quando você é a única pessoa que sabe que D. Pedro era um aficcionado por conhecimento. Imagine que você detém o conhecimento da verdade que foi subvertida para todas as pessoas que começam a tomar você por louco por ser a única voz com um discurso diferente e, de repente, você se torna uma ameaça que precisa ser aniquilada. E agora, conseguiu sentir melhor?

É esse o mundo que estamos construindo. Aos poucos, as pessoas se tornam mais celular e menos humanos. Aos poucos o conhecimento vai sendo manipulado e subvertido para aquilo que os "manda chuva" querem e nós precisamos que essas pessoas que pensam e são consideradas loucas continuem escrevendo para nos mostrar a realidade. Precisamos que esses malucos continuem gritando no meio da multidão para nos alertar que estamos sendo manipulados. Precisamos acordar para enxergar o mundo como ele é e arregaçar as mangas para transformá-lo o que ele deveria ser. 

Como eu queria que cada pessoa descobrisse a magia que é se apaixonar por um livro. Ler uma história e fazer parte dela, ao mesmo tempo em que permite que ela faça parte de você, então os dois mundo co-habitam num mesmo, novo, melhorado. Que pelo menos uma vez eles tivessem a oportunidade de ler uma passagem e apenas olhar para o céu, sentir a brisa batendo no seu rosto e deixando as palavras ecoarem no seu coração, pesando seu impacto, refletindo suas verdades. Fahrenheit 451 é um alerta, um grito de advertência para aquilo que estão fazendo conosco e o que estamos perdendo. E o que mais me assusta é que, provavelmente, quando as pessoas se derem conta e acordarem para essa verdade — e temo mais ainda que isso não aconteça — será tarde demais.

Mais que recomendado!

Os Filmes

Direção: François Truffaut
Roteiro: François Truffaut, Ray Bradbury, Jean-Louis Richard, David Rudkin, Helen Scott
Ano: 1966
País: Reino Unido

Sinopse: Adaptação do livro de Ray Bradbury sobre uma sociedade do futuro que baniu todos os materiais de leitura e o trabalho dos bombeiros de manter as fogueiras a 451 graus: a temperatura que o papel queima. Um bombeiro começa a repensar sua função ao conhecer uma jovem encantadora que adora livros.

Por incrível que pareça não foi tão complicado quanto achei que seria achar esse filme na net, por ser uma produção antiga relevei algumas coisas como os efeitos especiais e alguns cortes de imagem. A narrativa em si é parcialmente fiel ao livro, embora eles tenham omitido alguns personagens e transformado Clarisse de uma adolescente para uma professora e algumas outras mudanças que incomodaram um pouco, mas deu para relevar.

A Julie Christie, que interpreta tanto a Clarisse quanto a Mildred (que aqui trocaram o nome para Linda) não convenceu muito, enquanto a atuação dela como Linda soava insossa, embora isso estivesse de acordo com a personagem e o contexto dela, parecia forçado. Na verdade, boa parte do elenco parecia bem forçado, mas ela era a pior. Contudo, para uma adaptação, fora as elipses de algumas coisas foi boa. 

Direção e roteiro: Ramin Bahrani
Produção: David Coatsworth
Ano: 2018

Sinopse: Em uma sociedade do futuro na qual livros são proibidos e queimados, um bombeiro começa a ler em segredo e descobre uma organização rebelde subterrânea engajada em proteger a literatura.

Esse aqui foi difícil de achar pra ver e ainda não consegui assistir todo porque a internet não deixou. Eu não chamaria, inclusive, de adaptação, acho que o termo certo para esse filme seria releitura. Por que é o que ele faz, pega a ideia do livro e recria em algo diferente.

Apesar de ter ganhado alguns prêmios, a maioria da galera não gostou muito da produção do longa e, particularmente, como uma adaptação literária eu sou obrigada a concordar que não é satisfatório, ele não só elipsa personagens como a Mildred que se tonou um robô literalmente, como cria coisas que não existem no livro, mas como material em si, apesar de só ter conseguido ver a metade, não acho que a obra seja de um todo ruim.

Esse filme tem o claro propósito de explicitar a alienação e a mecanização cada vez maior causada pelas redes sociais e a internet em si. A doutrinação e a lavagem cerebral, além de dar uma leve alfinetada na pirataria literária embora ela tenha sido contextualizada de acordo. Enquanto no livro e na produção de 66 se queimam livros, aqui se queimam HD's e computadores. Inclusive, esse filme vai um pouco além mostrando um futuro onde livros físicos são uma raridade tendo sido destruídos não somente pelos bombeiros tendo em vista a manipulação do governo — e aqui é bem mais explícito a ditadura e a subversão da verdade por parte dos governantes —, mas também pelo espaço virtual em si que, aos poucos, vai ganhando mais espaço.

Como sou da velha guarda, não dispenso meus bons exemplares físicos que posso abraçar, cheirar e folhear. 

Até onde vi, Clarisse é também uma jovem e não adolescente, aqui é uma pária que trabalha para os dois lados, os rebeldes e os bombeiros. E, bem, esse filme não tem quase nada do livro. A proposta de trazer o universo para atualidade funciona como uma faca de dois gumes, ao mesmo tempo que as discussões e a explicitude de alguns "pontos delicados" seja uma excelente ideia, o afastamento da narrativa como um todo e o roteiro não muito forte podem tornar a produção um pouco cansativas para alguns. Pelo pouco que vi, como adaptação literária eu detestei, mas como material original é uma proposta que vale a pena ser analisada mais a fundo e pode gerar discussões interessantes.


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