Original: Fahrenheit 451
Ano: 1953
Autor: Ray Bradbury
Páginas: 215
Gênero: Distopia, soft science fiction
Sinopse: Escrito após o término da Segunda Guerra Mundial, em 1953, Fahrenheit 451, de Ray Bradubury, revolucionou a literatura com um texto que condena não só a opressão anti-intelectual nazista, mas principalmente o cenário dos anos 1950, revelando sua apreensão numa sociedade opressiva e comandada pelo autoritarismo do mundo pós-guerra. Agora, o título de Bradbury, que morreu, em 6 de junho de 2012, ganhou nova edição pela Biblioteca Azul, selo de alta literatura e clássicos da Globo Livros, e atualização para a nova ortografia.
A singularidade da obra de Bradbury, se comparada a outras distopias, como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou 1984, de George Orwell, é perceber uma forma muito mais sutil de totalitarismo, uma que não se liga somente aos regimes que tomaram conta da Europa em meados do século passado. Trata-se da “indústria cultural, a sociedade de consumo e seu corolário ético – a moral do senso comum”, segundo as palavras do jornalista Manuel da Costa Pinto, que assina o prefácio da obra. Graças a esta percepção, Fahrenheit 451 continua uma narrativa atual, alvo de estudos e reflexões constantes.
O livro descreve um governo totalitário, num futuro incerto, mas próximo, que proíbe qualquer livro ou tipo de leitura, prevendo que o povo possa ficar instruído e se rebelar contra o status quo. Tudo é controlado e as pessoas só têm conhecimento dos fatos por aparelhos de TVs instalados em suas casas ou em praças ao ar livre. A leitura deixou de ser meio para aquisição de conhecimento crítico e tornou-se tão instrumental quanto a vida dos cidadãos, suficiente apenas para que saibam ler manuais e operar aparelhos.
O Livro
"A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?"
Se essa citação acima não te causou incômodo, te assustou pelas recentes ameaças políticas do cenário brasileiro e não te fez torcer o nariz, então tem algo bastante errado com você. Cogite pegar um livro de história. Ler Fahrenheit 451 é como levar um tapa na cara e um soco no estômago, especialmente diante da real ameaça ao livro e ao conhecimento que enfrentamos nesse momento.
Seguimos um mundo ali pelos anos 90, em algum lugar não especificado nos EUA, onde os bombeiros são as "armas da felicidade", eles queimam livros e mantem a sociedade nas garras daquilo que o governo deseja delas: alienação. Um mundo onde ninguém se preocupa com nada, vivem para assistir televisão sem absorver nada útil, sem pensar, entorpecidos por remédios e existindo sem qualquer razão, de forma robótica. Porque pensar, questionar, opinar, causa desconforto, gera infelicidade.
O protagonista e narrador é Montag, um bombeiro que como a maioria dos colegas de ofício vive nessa mesma bolha, mas esconde um segredo no duto de ventilação da sua casa: livros. Claro que ele não começou a furtá-los de uma hora para outra, isso se deu de um encontro que ele teve com um velho professor de inglês que perdeu seu espaço para a doutrinação televisiva. Mesmo sem tê-los lido, Montag sente certa atração por eles.
Um dia, porém, ao voltar do trabalho, um encontro muda toda a sua vida: uma adolescente chamada Clarisse entra em seu caminho e puxa assunto com ele. Como bombeiro, muitas pessoas sentem-se intimidadas perto dele, mas aquela garota estranha não parece incomodar-se na sua presença. Logo de cara, Montag percebe que Clarisse é diferente, ela não vê o mundo pela limitação dos ecrãs nas paredes como sua esposa Mildred, ela observa o céu, prova a chuva, passeia ao ar livre, questiona o porquê das coisas, algo por si só já perigoso demais em um mundo que aceita tudo que lhe é dado sem fazer perguntas.
Essa adolescente faz a Montag três perguntas cruciais: 1. Por que ele faz o que faz. 2. Um dia, bombeiros apagaram incêndios ao invés de provocá-los? 3. Você é feliz? Ao longo da narrativa, nós vamos sendo, junto com Montag, apresentados à importância dessas indagações. A primeira pergunta levou o bombeiro a questionar a bolha que lhe cercava. A segunda, fez-lhe questionar a sua verdade enfiada goela a baixo e a terceira fez-lhe questionar sua própria existência naquele mundo. Pura filosofia. E é essa uma das coisas que esse livro nos mostra: a importância do pensar, logo, da filosofia.
451 ºF equivale a 232,778 °C e diz-se ser a temperatura em que o papel do livro pega fogo e queima, mas a ideia por trás dessa afirmação vai muito além, a ideia aqui é justamente queimar aquilo que desperta a criticidade, queimar o que faz as pessoas questionarem o mundo no qual habitam, queimar as ideologias que as fazem lembrar que tem direitos. Queimar livros é queimar o direito à expressão, ao conhecimento, ao pensamento e isso implica tirar das pessoas o direito de escolha ou subverter esse direito em uma manipulação que as faça crer que elas têm controle sobre o que fazem.
É o que nós vemos conforme Montag chega em casa com a cabeça cheia de pensamentos conturbados se fazendo acreditar que é feliz, mas sem conseguir se convencer disso. Olhando sua esposa apática, viciada em remédios e controlada por uma "família" virtual inexistente e sem afeto, ele se pergunta se aquilo que faz é mesmo para garantir felicidade às pessoas, sequer consegue lembrar o dia que conheceu a esposa, ainda mais: começa a se questionar se aquela é mesmo sua esposa e não uma estranha que fizeram-no acreditar que era sua esposa. E o choque só aumenta quando Montag vê a mulher caída no chão, inconsciente, após tomar mais comprimidos do que deveria.
Assim, o bombeiro começa a saga para descobrir o que há por trás das palavras dos livros que queima, por que pessoas perdem a vida para mantê-los e para continuar seu legado, por que ainda existem aqueles como Clarisse, que se rebelam contra os ecrãs e escolhem pensar, sentir o desespero das ideias e dos questionamentos, ser parte da magia que é ler um livro. E quanto mais Montag descobre as verdades que lhe foram tiradas e imerge no mundo das palavras, mais seu mundo vai sendo desconstruído e ele passa a enxergar as verdades que sua bolha lhe impedia de ver, mas sua corporação não está disposta a deixá-lo sair numa boa e sua esposa — um fantoche bem treinado desse mundo — é a primeira a se virar contra ele.
Gente, é perturbador a forma como esse livro é atual. Enquanto ainda estava lendo fiquei sabendo da proposta de tarifar os livros e meu coração pulou batidas diante do horror dessa distopia podendo se tornar real. Analisem bem: primeiro tiram filosofia e sociologia das escolas, minimizam o estudo de história — que em vários aspectos já é subvertido com algumas desinformações dos livros — depois privatizam o livro, isso não soa assustador pra você? Se não, sugiro que pegue urgentemente um livro de história. É exatamente assim que começa um sistema de manipulação opressiva das massas: tirando completamente o acesso ao conhecimento e à capacidade crítica da população. Não é necessário queimar os livros, torne-os inacessíveis e o resultado será o mesmo.
O Brasil já é um país que culturalmente lê muito pouco, infelizmente, mas houve sim um crescimento no meio literário e temos que festejar isso, contudo, a ameaça ainda é real, o número de não pensantes ainda supera o de pensantes e isso é desesperador. Livros como Fahrenheit 451 devia ser levado para debates em aulas de literatura e história dentro das escolas, dentro das faculdades, o pesamento urge, o despertar da criticidade e da fome de conhecimento precisa ser inflamada nessa população manipulada e alienada que regurgita atrocidades como a volta da ditadura ou o apoio completo a discursos facistas. E quando a gente lê um livro desse só percebe como essa realidade imaginada em 1953 continua sendo uma ameaça real que se concretiza nas sombras de uma nação que não tem educação como prioridade, na qual as pessoas escolhem a ilusão do ecrã e se submetem a aceitar o que lhes é oferecido sem questionar.
Conversar, discutir, trocar ideias — ter ideias! — se posicionar sobre as coisas, contemplar a natureza — enquanto ela ainda existe! — pensar e repensar o mundo, isso é literatura. Há vida nos livros. Mesmo aqueles que contam histórias impossíveis e cheias de fantasia escondem sua verdade nas entrelinhas. É urgente que nos desvinculemos mais do nosso lado máquina e comecemos a olhar para o nosso lado humano, aquele que ajuda uma pessoa acidentada ligando para a emergência ao invés de gravar para pôr nas redes sociais, aquele que empatiza com o sofrimento dos outros, aquele que tem sede de descobrir a razão do azul ser azul ou da política ser o que é hoje. Aquele que olha o céu de verdade e não na proteção de tela do computador. Livros como Fahrenheit 451 seriam proibidos em países ditadores porque levantam ideias, questionamentos, fazem a gente enxergar a sociedade como ela se torna. Coloca aquela pulguinha atrás da nossa orelha e nos faz olhar em volta se perguntando "será que isso é manipulação?" "Será que já está acontecendo aqui?"
É esse o mundo que estamos construindo. Aos poucos, as pessoas se tornam mais celular e menos humanos. Aos poucos o conhecimento vai sendo manipulado e subvertido para aquilo que os "manda chuva" querem e nós precisamos que essas pessoas que pensam e são consideradas loucas continuem escrevendo para nos mostrar a realidade. Precisamos que esses malucos continuem gritando no meio da multidão para nos alertar que estamos sendo manipulados. Precisamos acordar para enxergar o mundo como ele é e arregaçar as mangas para transformá-lo o que ele deveria ser.
Como eu queria que cada pessoa descobrisse a magia que é se apaixonar por um livro. Ler uma história e fazer parte dela, ao mesmo tempo em que permite que ela faça parte de você, então os dois mundo co-habitam num mesmo, novo, melhorado. Que pelo menos uma vez eles tivessem a oportunidade de ler uma passagem e apenas olhar para o céu, sentir a brisa batendo no seu rosto e deixando as palavras ecoarem no seu coração, pesando seu impacto, refletindo suas verdades. Fahrenheit 451 é um alerta, um grito de advertência para aquilo que estão fazendo conosco e o que estamos perdendo. E o que mais me assusta é que, provavelmente, quando as pessoas se derem conta e acordarem para essa verdade — e temo mais ainda que isso não aconteça — será tarde demais.
Mais que recomendado!
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