terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

[Livro] Precisamos Falar Sobre Kevin (Livro + Filme)

Título Original: We Need To Talk About Kevin
Autora: Lionel Shriver
Ano: 2003
páginas: 416
Gêneros: Romance, Ficção, Suspense, Romance epistolar

Sinopse: Para falar de Kevin Khatchadourian, 16 anos – o autor de uma chacina que liquidou sete colegas, uma professora e um servente no ginásio de um bom colégio do subúrbio de Nova York –, Lionel Shriver não apresenta apenas mais uma história de crime, castigo e pesadelos americanos: arquiteta um romance epistolar em que Eva, a mãe do assassino, escreve cartas ao marido ausente. Nelas, ao procurar porquês, constrói uma reflexão sobre a maldade e discute um tabu: a ambivalência de certas mulheres diante da maternidade e sua influência e responsabilidade na criação de um pequeno monstro. Precisamos falar sobre o Kevin discute casamento e carreira; maternidade e família; sinceridade e alienação. Denuncia o que há de errado com culturas e sociedades contemporâneas que produzem assassinos mirins em série e pitboys. Um thriller psicanalítico no qual não se indaga quem matou, mas o que morreu. Enquanto tenta encontrar respostas para o tradicional onde foi que eu errei? a narradora desnuda, assombrada, uma outra interdição atávica: é possível odiarmos nossos filhos?

Esse foi, de longe, um dos livros mais difíceis que já li. 

O livro é narrado através das cartas e e-mails de Eva para seu marido Franklin. De início nós temos apenas 3 certezas: 1. Eva não está mais com  marido. 2. Eva não queria ser mãe. 3. O filho de Eva e Franklin está preso por assassinato em massa na escola. Até então tudo é meio nublado, apesar de ser dado logo na cara essas três certezas elas são mastigadas ao máximo por Eva que detalha sua vida de casada e mulher de negócios que vivia muito bem com o marido em Nova Iorque e não precisava de mais nada, além dele, para sua felicidade ser estável. Contudo, ela percebia que para Franklin apenas ela não era o bastante. Ele desejava um filho mesmo que nunca exigisse isso dela diretamente.

Mesmo estando consciente de que não queria um filho e não queria ser mãe, ela decide dar um filho ao marido, para realização dele, sem pesar as consequências que isso acarretaria para ela e a sua empresa, a vida que ela estava acostumada a levar. E então outra certeza entra em foco: Kevin nunca foi desejado pela mãe mesmo apesar da sua decisão. Tanto é que quando descobre que realmente está grávida, a reação de Eva é a pior possível e ela veste a máscara de futura mãe feliz se forçando a acreditar que, com o nascer do filho, o instinto materno então ausente (e aparentemente presente em todas as mulheres) vai aflorar nela.

Contudo, isso não acontece. Essa cena do parto dela me lembrou A Senhora do Jogo (um livro que leva o nome de Sidney Sheldon só pra vender, mas que não foi escrito por ele), era como um protesto, dizendo que se a criança era rejeitada desde a concepção tinha de vir ao mundo com a máxima dor para desde já saber o seu lugar. Algo do tipo. Eu não sou PSIcóloga/quiatra/canalista então não posso dizer com precisão nada a respeito da mente de Kevin ou de Eva, estou dando aqui puramente minhas impressões de leitura. Se é possível e verdadeiro que uma criança crie um vínculo com a mãe desde a barriga (coisa na qual, por sinal, eu acredito muito) então Kevin já sabia desde muito que a mãe não o queria e todos os seus instintos trabalharam, no início, para "protegê-lo" dela. Dessa forma, desde sempre ele a rejeitou porque sabia que todo o seu afeto era fingido.

Enquanto isso, Franklin (completamente idiota por ser pai desde a concepção do menino, tratando a esposa como uma debilitada), se recusava a acreditar que era possível um bebê sentir tal antipatia pela mãe e que era Eva que não compreendia o filho por não desejá-lo realmente. Isso se dá a vida inteira. Passeamos pela infância apática de Kevin, em que ele não demonstrava interesse por nada que não fosse confrontar sua mãe de todas as maneiras possíveis, o assustador da história está sempre nas entrelinhas, na forma como a rebeldia do menino é sutil e ele consegue fazer parecer totalmente arbitrária (se é que não o fosse de fato). Ainda assim, contrariando tudo, era dotado de uma inteligência quase fora do comum, mesmo que se empenhasse em demonstrar certo grau de estupidez ou recusa pelo conhecimento de propósito.

Muito do que Kevin pensava sobre o mundo era, percebemos mais tarde, um reflexo da mãe e embora ele criticasse de modo mordaz seu pensamento a respeito dos americanos que ela tanto desprezava (apesar de morar nos Estados Unidos e ser casada com um deles), muito do pensamento dela era tomado por ele como uma verdade e os diálogos desses dois eram reais embates psicológicos. Inclusive, num restaurante, quando Kevin tinha apenas 14 anos, sua sagacidade e erudição impressionam no diálogo com a mãe. Contudo, percebemos que, ao recusar a mãe e decidir (por falta de uma construção melhor) "crescer por conta própria, o menino não se desenvolveu apropriadamente, coisa que fica implícita na maneira como ele comete birras infantis mesmo na adolescência ou usa fralda de propósito até os seis anos só para atingir a mãe.

A coisa é que Kevin não era totalmente ruim ao passo que também não era bom. Eu terminei o livro sem conseguir ter uma ideia certa do motivador dele porque, por incrível que pareça, ao contrário do que vi muita gente dizer, eu não acho que foi a mãe dele. Acredito sim que ele tenha construído uma admiração pessoal por ela e muito do seu pensamento meio cruel do mundo e dos EUA, e, sobretudo, que ele queria a aprovação dela, coisa que nunca conseguiu em especial quando ela decidiu ter outro filho para provar o afeto maternal que nunca conseguiu alcançar com ele. Muitas das ações dele eram de fato para atacar Eva e ela era o cerne da raiva com a qual ele nasceu. Aquela raiva inexplicável que o tornava apático para o mundo. Porém, não acreditei, em momento nenhum, que ela fosse a razão de ele fazer o que fez na escola, embora ache com toda a certeza que o que ele fizera em casa tivesse o propósito claro de atingi-la como ele mesmo admitiu. Inclusive, em parte isso me lembrou a trama criada no filme A Órfã em que a guria mata todo mundo, mas deixa a mulher viva porque ela era o alvo do sofrimento e deixá-la sozinha seria a pior morte.

Cheguei ao breve pensamento de que Kevin era apenas vazio. Ao sentir a rejeição da mãe desde sempre ele não conseguia sentir empatia ou se conectar com o mundo o que tornava o amor "empurrado" do pai insuportável porque era claramente uma tentativa idiota de suprir aquilo que a mãe não dava. E em geral ele era tão parecido com Eva que impressionava que ela mesma não admitisse querer atirar em algumas pessoas. No final do livro, quando ele finalmente responde a pergunta que permeia o livro inteiro: "Por quê?" a gente percebe isso com mais nitidez, ele era alguém que não sabia lidar com sentimentos e os rejeitava com todas as suas forças, ao mesmo tempo que odiava a apatia. Ao fazer o que fez, acredito que ele teve apenas duas intenções: A primeira era atingir Eva, isso é óbvio, a segunda era puramente se sentir vivo. Sentir alguma coisa talvez, algo que ele pudesse não controlar, mas que não lhe causasse aquela sensação de asco como ele aprendeu a sentir com o afeto a partir do tratamento fingido da mãe ao longo de toda a sua vida.

Eva, por sua vez, entendeu a maternidade da pior forma possível e essa lenta construção (e põe lenta nisso) era apenas uma tentativa árdua de entender o próprio filho algo pelo qual ela de fato nunca se interessou sejamos bem francos. A sensação que eu tive é que ela só viu Kevin, de verdade, quando ele era tudo que ela podia ver e mesmo no começo ela só queria entender por que ele havia tirado tudo dela. E pode até ser que ele tenha feito isso para que ela o enxergasse de verdade embora ainda ache que a parte da escola foi pura e simplesmente porque ele queria sentir alguma coisa, ao mesmo tempo que queria tirar daquelas pessoas em específico algo que ele não conseguia ter: paixão por algo, determinação indômita, desejo. As pessoas que ele matou na escola (do pior jeito possível diga-se de passagem) eram o reflexo do que a sociedade e os pais esperavam dele e era isso que o irritava naquelas pessoas.

O livro levanta questionamentos sobre a cobrança das sociedades a respeito não só da maternidade em si (que parece ser uma imposição a todas as mulheres), mas ao papel delas na família uma vez que ainda não se aceita que uma mulher possa trabalhar e ser mãe ela deve ficar em casa cuidando dos filhos, a ideia arcaica do "sacrificar-se pela família".  Te digo que, apesar de abordar o tema, o livro não é sobre a construção de um massacre (ou muitos como é mostrado no livro), mas sobre a construção da mulher e da maternidade, sobre a complexidade humana e sobre o papel imprescindível da afetividade (real e sincera) que vincula entre mãe e filho já na concepção. Além de que, a meu ver (e não querendo entrar aqui na discussão do aborto, obrigada), esse livro reflete sim a possibilidade real de entendimento do feto pelo sensorial. 

Os últimos capítulos desse livro foram quase impossíveis de digerir, deixaram realmente uma sensação de mal estar que música nenhuma conseguiu acalmar de modo que eu não indicaria mesmo para pessoas sensíveis. Achei também o livro um pouco maçante, a Eva as vezes dava voltas enormes até chegar ao ponto principal e, ao mesmo tempo que era bom pra conhecer a personalidade dela, por vezes ficava meio chato. Mas acredito que a proposta do livro desde o começo já fosse essa, ser incômodo e forte.

Data de lançamento: 27 de janeiro de 2012 (Brasil)
Direção: Lynne Ramsay
Roteiro: Lynne Ramsay; Rory Kinnear
Elenco: Tilda Swinton
John C. Reilly
Ezra Miller
Jasper Newell
Siobhan Fallon Hogan
Ashley Gerasimovich

O filme cobre os eventos principais do livro sim, sem os rodeios de Eva, mas achei muito raso no sentido da construção do Kevin. Assim como o livro ele fica indo e voltando no tempo para dar um panorama dos eventos, mas para quem não leu o livro muita coisa se perde porque as personagens são apresentadas de modo muito breve mesmo com as atuações irretocáveis de Erza Miller (que eu amo) e Tilda Switon que, inclusive, ganhou um prêmio por isso. 

Entendo que são veículos totalmente diferentes, mas na minha concepção, tirar os diálogos de Kevin e Eva quase que por completo deixou uma lacuna enorme na história e deu a entender que Kevin era apenas o fruto indesejado que cresceu corrompido pela frieza da mãe o que, enquanto lemos o livro, sabemos não ser tão simplista assim. Por isso achei muito raso, embora faço ressalvas para a beleza estética da produção que não apelou para o gore tão adorado, mas soube criar um longa explicitamente violento com uma sutileza quase poética (se é que se pode dizer isso) demonstrando em cores e simbolismos a crueldade e o peso da trama.

Para quem procura um resumo básico e breve da história o filme serve bem a esse propósito, mas se quer conhecer de verdade recomendo ler o livro e se preparar psicologicamente para o que vai encontrar naquelas páginas. Inclusive, tem esse filme completo em HD no youtube.


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