Sinopse: Bem-vindos a uma realidade alternativa, onde a monstruosidade cotidiana da cidade grande é revelada em toda a sua crueza e crueldade. Um lugar onde os policiais se transformam em lobos quando a noite cai, onde os políticos são vampiros centenários e os viciados são zumbis, dominados por uma droga que provoca o irresistível desejo de comer cérebros. Uma metrópole infestada de criaturas sinistras: ogros, gárgulas, vermes do pântano, endemoniados e seres bestiais acometidos pelo Mal de Circe, que faz vir à tona o lado animal de cada um.
É nesse dantesco cenário que vamos encontrar Liana, uma jovem zumbi em sua árdua jornada das trevas da ignorância para a luz do autoconhecimento. Nessa aventura, ela precisa enfrentar os monstros externos e internos se quiser conquistar o grande prêmio: descobrir sua verdadeira natureza; e, assim, cumprir sua missão. Tudo isso em meio a uma trama de assassinato, perseguição e muitas reviravoltas, que envolvem misteriosos seres interdimensionais e um asteroide em rota de colisão com a Terra.
Uma história onde a fantasia é tão apavorante que chega a se confundir com a mais pura realidade.
Essa será, provavelmente, uma das resenhas mais difíceis que já escrevi. Peço desde já desculpa ao autor caso minha sinceridade nas palavras o magoe de alguma forma. Tal como aconteceu com Os Cinco do Ciclo, fui convidada pelo próprio Fábio Shiva a ler sua mais recente obra Favela Gótica, como minha meta de leitura anual estava estabelecida esperei uma brecha para colocá-lo na lista de prioridades e eis que consegui vaga neste mês de novembro. Confesso que, no que me diz respeito, a história deste livro não funcionou por vários fatores e acredito que o principal deles seja o fato de eu não ser muito aberta a distopias. Ainda assim, não estou dizendo de nenhum modo que o livro é ruim, apenas a temática não me agrada muito, contudo vale salientar que, até certo ponto, é um livro necessário em especial na atual situação política e social do nosso país.
"É um lugar abarrotado de indivíduos, que só por zombaria poderia ser chamado de comunidade. As relações humanas são baseadas na competição e na desconfiança."
O enredo nos transporta para uma sociedade desigual com criaturas analógicas que referenciam setores da nossa sociedade em uma alegoria de fatos intrincados que culminam praticamente numa crítica/sátira religiosa. Acompanhamos Liana, uma jovem ali pelos 18, 19 anos que vive numa cabana decrépita com mais alguns "amigos" que partilham do seu vício pelo composto Z (Z-SDA ou zaserdopradre) uma droga poderosa e letal que em seu estágio final transforma o usuário em zumbi (literalmente falando). Ela vive com esses amigos na favela que é comandada pelos crocodilos (ou jacarés não sei bem) que comandam a distribuição de Z pela região. Liana, ou Lica como é chamada, dança em uma casa de striptease e se prostitui na orla para conseguir dinheiro e comprar droga, no início do livro ela está na fase inicial do vício.
Quando um jovem rico aparece na cabana acompanhado de Tio Biu, o que parece ser o "líder" da "família", atrás de comprar maconha (que ele trata por massa e eu fiquei voando um bom tempo até o autor finalmente dizer que era maconha) o homem faz todo um teatro com Liana para tirar dinheiro dele, contudo o tiro sai pela culatra e o garoto acaba morto por uma das usuárias de Z em estado avançado do vício que come o cérebro dele após rachar-lhe o crânio. Apavorada com a cena, Liana sai correndo da cabana e vai na direção do Cinema Orxxxx onde faz striptease em troca de dinheiro e enquanto isso acontece vamos conhecendo um pouco mais das criaturas alegóricas criadas pelo autor.
"Mesmo a pior monstruosidade acaba tornando-se banal depois de ser repetida à exaustão. (...) Ser normal é só a maneira mais ordinária de ser monstruoso."
Após conseguir o dinheiro da droga ela acaba sendo atacada, junto de outra dançarina do cinema, por um grupo de jovens que joga ácido na outra dançaria, Priscila, e espanca Liana até ela ficar quase incapaz de se mexer e a teriam matado não fosse a chegada da polícia, aqui chamados de Lobos (literalmente lobisomens). Liana consegue escapar, mas a polícia e os chamados Cinzentos estão na cabana onde ela mora, mataram os demais moradores, um conseguiu fugir e ela foi traída pelo único que restou: tio Biu. Fugindo em busca do comandante da favela, ela consegue escapar por um triz, seguindo para fora da cidade e seguindo a jornada para descobrir mais sobre os fantasmas e a si mesma no que pode ser a chave para salvar o mundo.
Vou me abster de falar muito sobre a história porque ela não é muito grande e embora os capítulos sejam bem longos em sua maior parte, posso acabar soltando alguns spoiler sem querer na minha mania de falar demais. Uma das coisas que me pegou desprevenida nesse livro foi a linguagem bem crua utilizada, às vezes Shiva usava uma mescla da lírica clássica com o coloquialismo que não dava um contraste muito interessante, muitas gírias da favela que, por não conhecer o mundo, me deixavam meio à paisana levando tempo até entender o que ele queria dizer ou passando sem entender mesmo. A forma como o livro foi montado também me causou estranheza, ele parecia um artigo científico, os tais "registros akashicos" ficavam no meio da narrativa como uma citação que apesar de servir como um elemento explanador para o contexto da história, ficava meio que à deriva no enredo. Acho que ele poderia ter sido colocado como um glossário no começo ou fim do livro ou então ter sido incorporado à narrativa de uma forma mais dinâmica de modo a fazer parte da história e não como um apêndice no meio do livro.
Gostei da maneira como ele usou analogias para representar os principais problemas enfrentados pela sociedade brasileira, a triste decadência dos usuários de droga e como a desigualdade social e a corrupção alimentam a marginalidade que se espalha como um câncer pelo país, o fato de políticos serem representados por um vampiro não poderia ter sido mais inteligente e bem colocado. Contudo, o enredo acaba desembocando numa espécie de ficção científica distópica que na minha concepção não encaixou muito bem com o que foi apresentado na primeira parte da história, mas fez sentido é o que importa. O livro tem um ar de filosofia que pode acabar soando como doutrinária ainda que não seja, creio eu, a intenção do autor, mas a crítica religiosa presente no livro, especialmente o ar satírico utilizado, não me agradou muito, acredito que haja maneiras menos agressivas de se fazer uso da crítica ou do contraponto, como Elias Flamel fez muito bem em seu livro Os Cinco dos Ciclo.
Isso pode soar como um spoiler então pule esse parágrafo só por precaução. *De início essas críticas ou contrapontos ficam aparecendo de forma sutil, são mais nítidas na parte das freiras e seu ritual macabro e erótico. Culminam, é claro, no final do livro com o parto de Liana no que seria as sombras que salvariam o mundo do impacto com o corpo celestial que destruiria a terra.* Como autora sei que a literatura é desvinculada de crenças ou mesmo dos grilhões do que temos por real, mas também acredito que existam formas de utilizar os recursos de expressão ideológica sem ferir a crença de ninguém. Contudo, isso é apenas minha opinião.
O livro é pertinente, como já falei, bem escrito e cumpre seu papel. Não foi, infelizmente, prazeroso para mim, mas isso acontece, nem sempre os livros se comunicam com todo mundo. Acho que não faço parte do público alvo do autor, mas foi bom conhecer mais essa voz da literatura brasileira e, no fim, sou das que acredita que toda leitura vale a pena, mesmo as que não gostamos muito nos acrescentam alguma coisa. Desejo muito sucesso para o autor e dou-lhe os parabéns pelo mérito de uma obra tão atual e pautada na nossa realidade mais urgente, além da metáfora analógica usada de modo brilhante (porque não há outra maneira de colocar isso além de brilhante) no enredo. E minhas desculpas pelo fato de não ter apreciado tanto quanto possivelmente esperava.
"Por pior que seja a notícia, se ela for repetida por tempo suficiente todo mundo acaba se acostumando. A maior parte das pessoas só se importa com aquilo que as afeta diretamente, como o preço do pão e o resultado do futebol." Essa foi uma das minhas citações favoritas, tão certeira com relação à alienação da sociedade que minha vontade era colocar num outdoor em todas as cidades do Brasil.
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