Autor: Fernando Morais
Ano: 2000
Gênero: Biografia, fats reais, crime
Sinopse: A Shindo Renmei, ou "Liga do Caminho dos Súditos", nasceu em São Paulo após o fim da Segunda Guerra, em 1945. Para seus seguidores, a notícia da rendição japonesa não passava de uma fraude aliada. Como aceitar a derrota, se em 2600 anos o invencível Japão jamais perdera uma guerra? Em poucos meses a colônia nipônica, composta de mais de 200 mil imigrantes, estava irremediavelmente dividida: de um lado ficavam os kachigumi, os "vitoristas" da Shindo Renmei, apoiados por 80% da comunidade japonesa no Brasil. Do outro, os makegumi, ou "derrotistas", apelidados de "corações sujos" pelos militantes da seita. Militarista e seguidora cega das tradições de seu país, a Shindo Renmei declara guerra aos "corações sujos", acusados de traição à pátria pelo crime de acreditar na verdade. De janeiro de 1946 a fevereiro de 1947, os matadores da Shindo Renmei percorrem o Estado de São Paulo realizando atentados que levam à morte 23 imigrantes e deixam cerca de 150 feridos. Em um ano, mais de 30 mil suspeitos dos crimes são presos pelo DOPS, 381 são condenados e 80 são deportados para o Japão. Nesta sua volta à grande reportagem, Fernando Morais conta a história da seita nacionalista que aterrorizou a colônia japonesa no Brasil.
Essa foi minha oitava leitura de março e eu fiquei bem contente que consegui ler bastante coisa esse mês, apesar de terem sido em sua maioria livros curtos. Também conquistei o hábito de ler nos fins de semana o que tem ajudado ainda mais a acelerar a meta que estabeleci para 2022. Esse livro, inclusive, foi uma adição de última hora por motivos de pesquisa, queria conhecer a fundo sobre a Shindo Renmei para usar esse plano de fundo em um livro de ficção, mas a leitura acabou excedendo e muito as minhas necessidades e expectativas.
O jornalista Fernando Morais começa sua narrativa contando as consequências da rendição do Japão para os chamados "súditos do eixo" nos países vencedores (embora "vencer" numa guerra seja muito relativo, há mais perdas que ganhos no meu ponto de vista, mas ok), o Brasil, nessa época, abrigava a maior colônia de japoneses fora do Japão e dessas pessoas foram tirados os bens, o acesso à informação, o direito de se expressar, de se reunir e de usar sua própria língua. Segregados, os japoneses eram reprimidos pelo Estado ditador.
Sem acesso à informação, pela lei de proibição de publicações em língua japonesa no país, a notícia de que o Japão havia se rendido na guerra chegou atrasada e para poucos japoneses. A maioria, patriota cega e fanática, se recusava a acreditar que seu imperador Hiroíto, o divino, se declarara um mortal e entregara os pontos. Mas os "brios" incendeiam mesmo quando a colônia paulista é invadida por policiais e sua bandeira sagrada é ultrajada por um cabo. Esse é o estopim para o ódio dos japoneses.
Contudo, ao contrário do que se poderia pensar, a mira da nascente Shindo Renmei (Liga do Caminho dos Súditos) não era voltada para os brasileiros que, em sua absurda onda nacionalista, se mostravam tão preconceituosos, xenofóbicos e cruéis quanto o próprio nazismo que combateram durante a guerra, já que o Brasil era aliado dos EUA. A fúria da colônia japonesa era voltada contra eles próprios. Porque um brasileiro, aliado dos americanos, podia contar "mentiras" ou acreditar em mentiras acerca do resultado da guerra, mas um japonês nunca aceitaria a derrota de seu país que jamais antes havia perdido uma guerra. E qualquer japonês que afirmasse acreditar naquela mentira, tinha o coração sujo, portanto, era um traidor do império.
Começa então a caça às bruxas. O assassinato de um "coração sujo" e o atentado a outro na mesma noite colocam a polícia da época em alerta para um grupo de assassinos que, até então, não tinha muita forma diante dos policiais. Mais ameaças eram distribuídas na colônia e cada vez mais a polícia recebia pedidos de ajuda que pouco podia fazer ou mesmo se interessava em ajudar boa parte dos casos.
Inicialmente, a Shindo Renmei — como bem aponta o autor — era apenas um grupo com nenhum preparo estratégico e um tanto quanto ingênuo, cego por uma vingança que os levava a agir de forma precipitada, mas com "honra" e, dos assassinatos cometidos por eles, vários foram de pessoas inocentes que não eram verdadeiramente os alvos do grupo. Seus líderes se limitavam a dar ordens de morte, dinheiro e armas e todos os assassinos tinham o dever de se entregar à polícia tão logo terminassem o trabalho.
Paralelo a isso, temos a trajetória de suas personagens em um plano de fundo muito bem abordado pelo autor, cada um com uma vida e uma profissão, com um passado ligado à honra de seu país e a busca de uma vida melhor longe de sua casa. Morais parte do plano histórico geral para gradualmente desenhar os dramas pessoais, cheios de detalhes que fornecem conteúdo humano à obra. O contexto histórico, político e social do Brasil também é retratado com clareza e nos oferta uma verdadeira aula de história tão fluida que nem parece que é de verdade.
O intuito aqui não é "passar pano" para os japoneses, alguns deles eram — tal como os ideais de seu país apoiando a Alemanha nazista — preconceituosos, homofóbicos e antissemitas. Contudo, não eram todos, e por mais que discordemos do pensamento de alguém ou de seu estilo de vida, isso não nos dá o direito de tratar essa pessoa com violência, tirar dela seus direitos mais básicos e ofendê-la como aconteceu com os japoneses no Brasil e nos EUA. Esse livro acabou sendo uma espécie de complemento para o plano de fundo de O Amante Japonês no qual a família de Ichimei também sofre a represália do governo pela posição do Japão na guerra, o contraponto nesse livro, contudo, é bem maior (talvez por ser uma ficção) uma vez que Ichimei acaba se relacionando com Alma, uma judia.
De sua parte, igualmente, os japoneses não estavam isentos de culpa pela sua conduta, mas tentei ver o lado cultural deles que é muito diferente do nosso, a maneira como se educam, são criados e sua visão de mundo que difere da nossa em todos os aspectos. Por isso, apesar de encarar, com a minha visão de mundo, a atitude deles como inaceitável e absurda, no contexto sociocultural deles faz sentido e, embora não se justifique tirar a vida de alguém não importa a circunstância, pelo menos essa atitude é acompanhada de uma consciência cultural por parte do leito que é magnificamente exibida e explicada pelo autor.
Gostei muito do livro, a forma fluída e fácil de ler, fazendo a gente até esquecer que é um livro jornalístico e, apesar dos eventos tenebrosos que lemos, não é uma leitura crua que trava. Aprendemos um pouco mais sobre a história do nosso próprio país também o que é muito válido num país que não liga muito para história, infelizmente. Além disso, é imprescindível como um material para gerar não somente debate, mas reflexão acerca de muitas questões.
Impressionou-me como mesmo depois de todos os terrores da guerra, de tudo que o mundo vivenciou, da forma pavorosa como os brasileiros se portavam na sua política suja desde sempre, nada se aprendeu. Continuamos repetindo os mesmos erros na tentativa de buscar um resultado diferente, inconscientes que esse resultado novo será nossa própria aniquilação. O mundo agora parece tão preso na cegueira de seu ódio e ganância que os homens parecem ter esquecido que são mortais, puro pó. É lamentável que esses dias sombrios descritos nesse livro estejam prestes a se repetir.
Há um filme lançado em 2011 dirigido por Vicente Amorim, mas eu não tive coragem de assistir porque sou fraca com violência e não consigo ver sangue. Contudo, pelas críticas que li a respeito do filme, parece que não é muito fiel ao livro e tampouco consegue expressar as complexidades das personagens tão bem retratadas por Fernando Morais. Deixo para quem se interessar tirar suas próprias conclusões.
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