Título Original: Full Dark, No Stars
Autor: Stephen King
Ano: 2010
Gênero: terror
Número de páginas: 368
E finalmente chegando com a parte final dessa resenha. Terminei o livro um pouco tarde porque parava sempre que terminava um conto para escrever a resenha e digerir o que li. Foi um dos livros mais difíceis de ler, gente, sério. Mas de algum modo valeu a pena.
Gigante do Volante
Esse conto, ainda mais que o anterior, me deixou realmente uma péssima sensação física e psicológica. Enquanto lia ficava sempre me remetendo ao filme I'll spit on your grave, mesmo sem nunca tê-lo assistido. O conto acompanha Tessa Jean, uma jovem escritora de livros policial ao estilo Miss Marple. Uma mulher com uma vida pacata que só se preocupa com seu gato e seu futuro na velhice solitária que lhe espera. Isso até ela receber um convite para palestra em Chicopee, uma cidade mais ou menos próxima de onde mora. Mesmo tendo uma palestra já marcada para breve, como o valor oferecido é muito bom, ela acaba aceitando e é quando seu pesadelo se inicia.
Tessa não podia imaginar que seu dia tão agradável teria um fim tão trágico. Após terminar sua sessão de autógrafos, a bibliotecária insistira que ela pegasse um atalho para casa, uma vez que a estrada principal era mais longa e com um tráfego maior. A ideia de chegar em casa mais cedo e poder desfrutar da companhia do seu bichano era tentadora, de modo que Tessa acaba aceitando sem imaginar que estava prestes a cair em uma armadilha. Em determinado ponto da estrada, seu pneu fura graças a um monte de entulho na estrada. Sem saída, ela acaba parada ao lado da estrada com um estepe que não sabe trocar e um celular sem área, o carro de uma banda passa, mas não lhe presta qualquer ajuda de modo que ela fica sozinha ali tirando os entulhos da estrada até uma picape, com um homem gigante, que lhe oferece assistente.
De início, como era lógico, Tessa fica um pouco apreensiva, mas o sujeito se mostra muito cordial. Até ela descobrir vários entulhos na parte de trás do carro idênticos aos espalhados na estrada que furaram seu pneu. Contudo, a ficha cai tarde demais e, quando ela menos imagina, está com o rosto todo roxo e ensanguentado enquanto o brutamontes a violenta. Pensando que estava prestes a ser assassinada, Tessa finge de morta e, para seu horror, acorda em um bueiro com outros dois cadáveres que aparentemente estavam ali ha mais tempo. Nua, desnorteada por uma concussão e sentindo dores horríveis em todo o corpo, ela perambula por longo tempo até conseguir raciocinar o bastante para sair dali.
Após andar vários quilômetros escondendo-se ao menos sinal de um carro na estrada, ela finalmente chega a um posto de gasolina e liga para uma companhia de táis de luxo que já tinha seu número de viagens anteriores, por estar sem sua bolsa e seus brincos de diamante, roubados pelo estuprador, por sorte eles tinham seu número de cartão de crédito e poderiam descontar a corrida direto do banco. Segura em casa - mas não se sentindo assim de nenhum modo - Tessa se divide em uma investigação amadora e o medo de ser encontrada pelo monstro a força a andar com uma arma em cada cômodo da casa. Além disso, há a possibilidade cada vez mais descartada de denunciar o ocorrido à polícia, em especial pelo fato de que as mulheres no esgoto merecem ser vingadas e a próxima vítima evitada, mas a vergonha e o medo de virar notícia nos jornais a levam ao caminho da segunda alternativa: vingança.
Depois de investigar no melhor estilo das velhinhas do seu livro e debater sobre as consequências possíveis do seu ato, a escritora bola um plano minucioso que só inclui duas coisas: não ser pega e garantir que o gigante do volante nunca mais vai ser o pesadelo de nenhuma mulher.
Talvez por eu ser mulher, esse conto foi realmente difícil de ler. Eu levei dias para continuar e confesso que nem mesmo a vingança de Tessa fez eu me sentir um pouco melhor ao final, restou apenas um enjoo muito forte e uns três filmes para tirar aquilo da cabeça. Como já disse antes, a escrita de King é muito crua, de modo que as sensações dessa situação foram claramente vívidas e horríveis para a personagem e para quem a acompanha. Ele levantou, é claro, a questão da violência contra a mulher se posicionando de modo muito sutil a respeito o que achei muito pertinente porque é um tema ainda muito atual. A questão da vergonha, do descaso das autoridades que sempre culpam a vítima e nunca o agressor porque as mulheres "pedem" pra ser violentadas (o que não encaixa na minha cabeça como uma pessoa pode pensar semelhante absurdo!), além de muitos outros elementos infelizmente reais não apenas nos EUA, mas em todo o mundo. Ainda assim, foi um conto muito difícil de ler pra mim, ainda pior que seu anterior, 1922.
Extensão Justa
Nesse conto, acompanhamos Streeter, um homem de cinquenta anos que está com câncer terminal e desenganado pelos médicos. Em uma de seus últimos passeios de carro, ele acaba encontrando um homem estranho na estrada atrás do aeroporto e, curioso pela localização estranha, se aproxima da barraca improvisada para ver o que o estranho homem gorducho tem a oferecer, além de avisá-lo do seu péssimo negócio em uma área não movimentada. Mas é surpreendido por uma conversa agradável em que, com aquele estranho, consegue se abrir com mais facilidade que a própria esposa. Em poucos minutos, Streeter conta seus infortúnios e recebe uma interessante proposta, extender sua vida por mais alguns anos e sem o câncer que lhe corroi por dentro.
Claro que ele acreditou, inicialmente, que o estranho homem era um lunático, mas de repente trocar sua vida de infortúnios pela vida perfeita de seu "melhor amigo de infância" que cresceu basicamente às suas custas enquanto ele vivia uma sobrevivência sem frutos, parecia ser um ótimo negócio. Assim, sem pensar muito, Streeter admite seu ódio velado por Goodhugh durante todos aqueles anos, desde que ele lhe tomara Norma, sua então namorada, até sua bem sucedida vida com seus três filhos perfeitos enquanto Streeter permanecia na mediocridade.
Com o negócio fechado, um verdadeiro "acordo com o diabo", Streeter fica curado da sua doença terminal por um "milagre" enquanto a vida de Goodhugh começa a descer mais fundo pelo ralo, começando com a morte da sua esposa Norma vitimada por um câncer violento, até a decadência de um por um dos seus filhos até então exemplares. Enquanto Streeter usufrui de uma vida de cada vez mais prosperidade e, quanto mais ele cresce, mais o outro afunda, quanto mais ganha, mais o outro perde. Em nenhum momento ele demonstra qualquer empatia real pela péssima situação do amigo, chegando, inclusive, a um nível de falsidade que chocaria se não fosse tão comum na atualidade. Na cabeça dele, todo o infortúnio sofrido pelo outro era justo, tal qual seu proporcional sucesso, ele nunca pensou que o progresso de Goodhugh adveio do seu próprio trabalho e coragem de arriscar, mas de uma sorte que lhe fora tirada desde a época da escola.
Eu encarei esse conto de várias formas, na verdade. Pessoas que sobem pisando em outras sem a menor consideração ou respeito. Gente invejosa que faz de tudo para destruir o outro ou mesmo, de uma perspectiva mais social, o medo que os ricos tem do socialismo porque a equidade financeira tiraria deles seu status superior. Sendo bem sincera, esse conto não me surpreendeu muito, foi apenas um retrato da falsidade, inveja e errôneo senso de justiça humano narrado em uma situação na qual todos se combinam para representar um lixo presente em todas as sociedades do mundo.
Um Bom Casamento
Darcy não sabe como encarar o marido. Não depois do que encontrou na garagem.
Até então, ela vivia uma vida pacífica com um homem amoroso e fiel que ela achou conhecer, mas não importa quanto tempo passamos com uma pessoa, nós nunca a conhecemos de fato por inteiro, não é mesmo? Sim. E ela descobriu que dormiu ao lado de um estranho por mais de vinte anos.
Mas como ignorar 27 anos de um casamento sólido com dois lindos filhos bem encaminhados na vida? Mais ainda, como ignorar o fato de que seu marido pode ser um serial killer de mulheres? E como você nunca sequer desconfiou? Eram essas as perguntas na mente de Darcy que vira toda a sua vida virar de cabeça para baixo ao procurar por simples pilhas AA para o controle remoto da TV.
Seu marido, Bob, era um homem adorável, ativo na comunidade, participativo na vida dos filhos, inteligente e bom. Como ela poderia supor que ele seria, sob tudo aquilo, um monstro? Mas era impossível negar a prova bem diante dos seus olhos e assim somos levados a um conflito emocional e psicológico de uma mulher de meia idade que não sabe como reagir diante do fato de que seu marido pode ter matado 11 mulheres e uma criança.
Contudo, se por um lado a história envereda na loucura de Bob que acredita ter dupla personalidade, nós também somos levados pelos sombrios bosques de Darcy que vê-se num mundo através do espelho, uma realidade sombria que reflete a sua própria de maneira parcialmente distorcida e esse conto é mais para uma reflexão do que simboliza, de fato, o mal. Sobretudo o que é justiça e qual a maneira certa de lidar com ela? Em alguns pontos remete um pouco ao conto anterior, mas em um ponto de vista diferente. Embora não seja nem menos brutal e nem menos perturbador.
Conclusão
Como o próprio King assume no posfácio desse livro, Escuridão Total e Sem Estrelas é um mergulho no buraco negro da humanidade, de mentes perversas e de um mal que se esconde dentro de "homens de bem", muito pertinente, aliás, com a nossa realidade muito escrota e atual. Um livro escrito a nove ou dez anos atrás, mas que continua, infelizmente, tão atual, pelo simples fato de que as pessoas (ou a maioria delas pelo menos) parou de pensar e refletir sobre a realidade, parou de questionar as coisas para simplesmente aceitá-las. King tinha a intenção, e conseguiu, escrever um livro para incomodar. Pelo pouco que li dele em Cujo acho que é um traço seu. Ele escreve sobre pessoas de verdade fazendo maldades reais dentro de uma ficção que espelha a realidade. Quantos cadáveres de mulheres são enterrados todos os dias por conta de maridos egoístas ou "doentes"? Homens inescrupulosos e cruéis? Quantas vidas não são destruídas todos os dias pela inveja de pessoas que não se preocupam em passar por cima de outras para conseguir o que querem? É o mundo em que vivemos. Onde a arte interpreta e retrata a vida.
Se o livro me causou tanto mal estar é sinal que é bom (e que eu ainda sou humana, graças a Deus!), porque é esse o propósito e sabemos que a obra é boa quando o propósito é atingido. Lerei outras obras de King porque, além de ser um autor da realidade, ele sempre tem algo a nos ensinar sobre narrativa nos seus livros, principalmente no que diz respeito a criar personagens que se conectam conosco e nos levam a refletir sobre suas ações, despertam empatia em nós, nos levando a questionar o que faríamos em seu lugar. E esse conflito é muito bom. Será que matar para vingar outras pessoas é justo? Será que crescer sobre o ódio que sinto por alguém que confia quase cegamente em mim é certo? Os fins, justificam os meios? São as perguntas que mais me fiz enquanto lia esse livro e não me atrevo a recomendá-lo para quem não gosta de leituras perturbadoras ou quem não tem um psicológico "firme" e um emocional estável.
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